domingo, agosto 17, 2003

Públicas virtudes...

... Vícios privados.

A discussão sobre o papel do Estado na gestão e controlo de áreas sensíveis de interesse público (como a nossa floresta) já tinha começado antes do "apagão" na América do Norte (EUA e Canadá, recorde-se).
Escrevia deste modo na entrada "Fogo de Vista":

"(...) Que ninguém se iluda com isto; acreditar que uma empresa privada cujo ramo de actividade seja o combate ao fogo ficará maravilhada com longos períodos de inactividade é irracional. Esta responsabilidade terá de ser de uma entidade que lucre muito mais com a inexistência de fogo do que com a sua ocorrência. Apenas o Estado cumpre este requisito. (...)"

Sobre esta polémica ver ainda, por exemplo:

Espírito industrial
Contextos
Espírito de serviço
e a trilogia:
1. Intro - A Democracia, esse mito.
2. Mezzo - Tragédia Comum.
3. Finale - A expansão da loucura.

Este memorando a propósito do excelente editorial de Manuel Carvalho, no Público de ontem, intitulado "As lições do 'apagão'", embora pecando por tanto condicional face a evidências incontornáveis:

Lido no Público - indisponível on line:
(editorial de Manuel Carvalho, p. 5, 16Ago2003)

--- quote ---

As paredes de néon de Times Square, a praça futurista de Nova Iorque, apagaram-se, o metro parou, a Bolsa, hospitais e serviços públicos tiveram de recorrer a geradores e pelo menos 50 milhões de cidadãos norte-americanos e canadianos passaram quinta e sexta-feira pela amarga experiência de viver um dia sem electricidade.
O maior "apagão" da história dos Estados Unidos esteve longe de revelar as consequências trágicas da falha de energia de 13 e 14 de Agosto de 1977, dias em que Nova Iorque viveu o pesadelo das pilhagens e da violência generalizada, mas mostrou que a maior e mais dinâmica economia mundial continua a ter "pés de barro" num sector essencial como o da energia. E saber se a origem do "apagão" se deveu a falhas no lado canadiano ou norte-americano é, neste momento, irrelevante: o que surpreende é o facto de uma avaria, por grave que seja, ser capaz de deixar às escuras cidades como Detroit, Toronto ou Nova Iorque.
E surpreende ainda mais quando se sabe que esta fragilidade tem a sua origem numa visão e numa prática económica que fazem dos Estados Unidos o mais competitivo país do mundo: o domínio quase integral do mundo dos negócios por empresas privadas. Ao contrário do que a ortodoxia tem provado, a desregulação e a privatização do sector da electricidade que fizeram emergir gigantes mundiais como a Enron não geraram eficiência, nem qualidade, nem fizeram esquecer o papel tutelar do Estado. Pelo contrário: "Somos uma superpotência com uma rede eléctrica do Terceiro Mundo", lamentava o governador do estado do Novo México e antigo secretário de Estado da Energia, Bill Richardson, em declarações à CNN. O encerramento de centrais de produção deficitárias eliminou as margens de segurança de fornecimento e os investimentos em novas centrais estiveram longe de responder às necessidades.
Vale a pena confrontar o caso norte-americano com a prática dos europeus em domínios sensíveis como a energia, geridos maioritariamente por empresas públicas. Sem carências de financiamento nem preocupações com a rentabilidade dos capitais, os monopólios estatais construíram uma infra-estrutura que garante hoje um padrão de segurança relativamente confortável. Comparativamente, o sector energético norte-americano ficou parado no tempo. Ao ponto de se poder afirmar que um "apagão" desta dimensão era "impossível" na União Europeia.
A escuridão de Nova Iorque é, por isso, um bom ponto de partida para se discutir a natureza das privatizações de áreas sensíveis para o interesse nacional como a energia. Vender empresas sem que haja a preocupação prévia em garantir a qualidade do fornecimento de bens públicos (como a electricidade) pode ser um péssimo negócio para o Estado. Até porque, na eventualidade de se constatar, como ora aconteceu, que as empresas não investiram o suficiente, terá de ser o Estado a assumir as responsabilidades. Perante omissão dos privados, nos EUA fala-se já na necessidade de o Congresso aprovar um programa energético para evitar que novos apagões se repitam.

--- end quote ---


nota: Destaques em Bold da responsabilidade d'A Sombra.

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