quinta-feira, outubro 30, 2003

"Give me somebody to bomb and I'll win."


Seis meses e mais de cem vítimas mortais e milhares de feridos depois da anunciada "missão cumprida" e do início da "reconstrução" do Iraque, o comando militar norte-americano reconhece um movimento organizado de guerrilha que combate a ocupação.
Até aqui, eram uns quantos "selvagens" isolados que cometiam acções "desesperadas", não se sabendo se eram libaneses, sauditas, iranianos, sírios ou... iraquianos; não se sabendo se eram civis, militares, membros da Al-Qaeda, unidades do escol da Guarda Republicana ou... soldados iraquianos desmobilizados à força.
Agora, continuam os norte-americanos sem saber de onde vêm e a quem obedecem os autores dos atentados, mas já lhes reconhecem o estatuto de guerrilheiros e admitem que estão organizados.

Se, no início deste conflito, era impensável a comparação do Iraque de hoje ao Vietname de ontem, agora isso parece inevitável.
Os guerrilheiros iraquianos, como os vietcong, usam métodos que nos habituamos a chamar de terroristas (ou já se esqueceram que os vietcong realizavam atentados deste tipo em Saigão e outras cidades do Vietname do Sul?), mas que são a resposta lógica ao poderio militar norte-americano. E que qualquer um que lê isto afirme que, se ameaçado por um atacante bem mais forte, não recorrerá a um golpe baixo para o derrotar, preferindo ser espancado em nome da honra. Balelas.

Com base diária e em número de dezenas por dia, os atentados contra as tropas ocupantes sucedem-se, desaparecendo os seus autores. Isto significa que uma grande parte da população os apoia.
A partir desta conclusão lógica, só restam duas alternativas aos norte-americanos; ou tentam reeditar o fracasso que foram as aldeias estratégicas controladas do Vietname (os tristemente célebres Hamlets), transformando o Iraque num gigantesco campo de concentração, ou reduzem as perdas e dão o dia por perdido, abandonando o Iraque à sua sorte.

Tudo indica que escolham a última hipótese.
Não existe o equivalente ao ARVN, o exército da Republica do Vietname (do Sul), no Iraque. Estupidamente, os norte-americanos dissolveram o exército iraquiano, pelo que os únicos combatentes são eles próprios e os ingleses, na prática. Os EUA não desistem de tentar criar o seu "ARVN" no Iraque com soldados de outros países, especialmente europeus, via ONU, mas já se tornou evidente o que pretendem e ninguém é parvo; desde os paquistaneses aos alemães, todos querem evitar enviar tropas para o "passador de carne" iraquiano.
Em "casa", sectores que apoiam tradicionalmente a política musculada de Washington, como as famílias dos militares, começam a ficar demasiado nervosos. Afinal, aquela ridícula cena do porta-aviões, em Maio, não era o fim feliz de Top Gun. Era o princípio do pesadelo. Um pesadelo que, tudo indica, terminará com a queda de George Walker Bush em 2004. A somar a isto, o anúncio do encerramento de bases nos EUA funciona como uma lâmina de dois gumes, transformando os típicos "hill Billies" em eleitores menos receptivos à política personificada por G. W. Bush ao mesmo tempo que reduz as possibilidades de manter grandes contingentes de tropas mobilizados, preterindo o número de efectivos em favor dos chorudos contratos "high tech" com o complexo militar e industrial; mais tecnologia, menos soldados. Neste momento, isto é um erro tremendo, para Washington.

Como relembrava Eduardo Prado Coelho na sua crónica do Público, a 29Out2003, os EUA contavam ter 30.000 soldados no Iraque, em Outubro; e Outubro chega ao fim com 140.000 efectivos no terreno, que se revelam insuficientes para controlar a situação. Uma "boa altura", portanto, para cortar no factor humano das forças armadas dos Estados Unidos. As tropas norte-americanas no Iraque têm o moral abaixo de zero e não vêem maneira de ser substituídas, quanto mais reforçadas, e já perceberam que o seu comando não faz a mínima ideia do que está a acontecer.

Quanto aos europeus, se os EUA não têm forma de assegurar a rotação das suas tropas no Iraque, o que podem fazer? Enviar 150.000 homens de oito ou nove países e deixá-los lá por dois anos? Se nem a NATO tem este tipo de efectivos integrados numa força coerente e auto-suportada, com que efectivos vai contribuir a Europa? Se os EUA estão prestes (não se pense o contrário) a retirar do Iraque, não o controlando com 140.000 soldados, como e porquê haveria a Europa de substituir os Estados Unidos, com ou sem mandato da ONU? E sob comando de Washington? Não me parece.

Como sucede no Afeganistão, Washington pretende reforçar o seu contingente, para depois o subtrair. Significa isto que os EUA pretendem arranjar, literalmente, outra carne para canhão que a sua, mas mantendo o controlo das operações. Apesar da resolução aprovada de emergência no CS da ONU, ainda estou à espera de ver a Europa levantar-se em armas para ir para o Iraque - e teria de se levantar em armas mesmo, dada a quantidade de efectivos necessária. Isso nunca vai acontecer.

A política desastrosa dos EUA conduziu-nos a este ponto. Desacreditou a ONU e as ONG's, como a Cruz Vermelha e os Médicos sem Fronteiras ou a AMI, hoje banalizados como "infiéis ocidentais" e transformados em alvos legítimos para quem não consegue já ver para além das aparências - porque, para além delas, viram com os seus olhos homens de uniforme e M16 a distribuir comida e medicamentos; porque viram com os seus olhos agentes paramilitares misturados com observadores independentes. Para os EUA é o vale tudo; porque não haveria de valer tudo para os iraquianos? Assim morreu Sérgio Viera de Mello, tal qual como continuam a morrer soldados e civis de todas as nacionalidades, no Iraque.

Só quem não quer não vê que a situação está completamente fora de controlo, e não é difícil imaginar o caos que se seguirá a uma retirada das tropas norte-americanas. Será o que tiver de ser. É no que dá brincar com a História.
Torna-se dolorosamente evidente que os EUA não compreendem o mundo islâmico, mas há mais; é agora mais óbvio que nunca o estado de embriaguez em que Washington se encontrava quando avançou para Bagdad. E a ressaca começa a ser insuportável.

Do outro lado da moeda, temos a Palestina. Tendo em consideração que os pseudoestrategos de Arlington e de Washington fazem passar por Bagdad o caminho para Jerusalém, nada de bom se pressagia.
Os israelitas já devem ter explicado mil vezes aos norte-americanos como resolver a situação no Iraque, mas não estou a ver o exército dos EUA a seguir as tácticas de choque do Tsahal. Para conseguir o que Israel consegue na Palestina, os norte-americanos teriam de ir para além dos hamlets e assumir a ocupação como conquista; negar a independência ao Iraque; estabelecer uma complexa e dispendiosa rede de bases militares no país; colocar meio milhão de homens no terreno; e, sobretudo, considerar o Iraque como território norte-americano, explicando isto tudo à sua opinião pública. Nada disto vai acontecer. Começou a contagem decrescente para a retirada norte-americana do Iraque. Resta saber se ocorrerá antes, durante ou após 2004. E o que deixará para trás.

Como no Vietname, o desespero de Washington vem de nada valer o seu poderio militar contra um inimigo fantasma. O sonho do comando militar norte-americano é que os guerrilheiros se juntem todos no meio do deserto para poder acabar com eles do ar.
O seu pesadelo é que isso só acontecerá... em sonhos.

Rui Semblano
Porto, 29/30 de Outubro de 2003

nota:
Sobre o título desta entrada:
"Hold them and I'll kill them with airpower.
Give me somebody to bomb and I'll win."

Major General James Hollingsworth, Senior U.S. Adviser,
ARVN III Corps, April, 1972
"Eu elimino-os do ar se os aguentarem.
Dêem-me alvos para bombardear e vencerei."

Major General James Hollingsworth, Conselheiro Militar norte-americano,
III Corpo do Exército da República do Vietname, Abril, 1972

nota2:
Ver entradas "Triomacabre" 1, 2 e 3, n'A Sombra.
Primeira entrada da trilogia macabra AQUI.
(Links para a trilogia em cada uma das suas entradas)

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