Entre "
as lições do 'apagão'" encontra-se a que demonstra, sem margem para qualquer dúvida, que o interesse privado é um péssimo gestor dos bens públicos. Bem podem esbracejar e vociferar os defensores da liberalização como salvadora da humanidade, que nada contrariará este facto.
O objectivo de qualquer investimento privado é o lucro. Nada mais. Mesmo as instituições privadas mais altruístas terminam por ser fortemente condicionadas por este factor, como as fundações que, supostamente, se destinam à preservação de qualquer tipo de património comunitário. Exceptuando estes casos, raríssimos na globalidade do panorama empresarial privado, o que importa é determinar se a actividade a desenvolver é rentável ou não, ideologias e sentimentalismos excluídos.
Neste campo, é-se inteiramente maniqueísta, literalmente e intrinsecamente.
Três exemplos, ao acaso:
I - A Saúde
O sector privado toma conta de um serviço de Saúde numa grande metrópole, até então gerido pelo Estado.
Primeiro passo: determinar que sectores desse serviço são os mais rentáveis.
Segundo passo: quantificar os ganhos com a melhoria e ampliação desses sectores em função da procura verificada.
Terceiro passo: determinar como tal melhoria e/ou ampliação pode ser feita sem elevar os custos do investimento, isto é, pela requalificação, adaptação e remodelação de recursos humanos e materiais já existentes.
Quarto passo: eliminação imediata de todos os meios materiais e humanos considerados redundantes, na lógica dos três passos anteriores.
Quinto passo: aquisição de novos recursos humanos e meios materiais que se mostrem indispensáveis após a reciclagem dos existentes, de acordo com o definido pelos três primeiros passos.
Sexto passo: ganhar a maior quantidade de dinheiro possível no espaço de tempo mais curto possível.
Resultado:
Uma unidade de saúde moderna, optimizada para gerar riqueza privada, cujas contrapartidas em serviços são condicionadas pelas leis de mercado, com fulcral incidência na procura, e aquelas a auferir pelo Estado, em impostos devidos, são objecto de trabalho para empresas de contabilidade de primeira linha, dado que a maximização dos lucros passa, inevitavelmente, pelo mínimo de perdas possível, entre as quais se contam os impostos.
Em concreto:
Utente: Seria possível ser examinado por um dermatologista?
Privado: Lamento. Esta unidade já não dispõe desse serviço. Aliás, já nem me recordo quando foi a última vez que tivemos um caso desses. Mas quando partir uma perna pode dirigir-se aqui. Temos os melhores especialistas e equipamento da Europa ao seu dispor. Isto é, desde que tenha um bom seguro de saúde ou disponha de dinheiro para os pagar.
II - A Água
Se existe um bem comunitário acima de todos os outros, à excepção do ar que respiramos, esse bem é a água.
A gestão exclusivamente privada deste recurso natural é obscena. Não estou a ver ninguém com mais de um neurónio a assinar um contrato de prestação deste tipo de serviço com um operador privado de uma rede de fornecimento de água em que se poderá perfeitamente ler, nas letras minúsculas em rodapé:
"Esta empresa reserva o direito de, a qualquer altura e sem aviso prévio, limitar o fornecimento a que este contrato respeita e/ou passar a fornecer um líquido de características aproximadas ao expresso no artigo 43º, alínea g.III, deste contrato."
Ou ainda:
"A reposição do fornecimento estabelecido neste contrato, em caso de corte por atraso do pagamento mensal devido, será feita no mais curto período possível, dependendo da disponibilidade dos nossos serviços, não podendo, no entanto, exceder os 90 dias, caso em que haverá lugar a indemnização. Em todo o caso, a reactivação deste serviço pelo motivo supra citado nunca será realizada antes de efectuado o pagamento das mensalidades em atraso e da taxa de reactivação, no valor mínimo de 1.000,00 €."
A privacidade de cada um é, obviamente, privada. Mas quando um serviço público essencial passa para o sector privado em exclusivo, a máxima: "Só assina quem quer" deixa de ter qualquer sentido...
III - A Electricidade
Como se verificou nos EUA, qualquer entidade privada que compre ao Estado uma rede de fornecimento de electricidade terá, desde logo, o cuidado compreensível de examinar a rentabilidade das unidades de produção e distribuição que a compõem.
Resultado:
Uma companhia de electricidade em que não existirão recursos considerados de baixo rendimento e/ou, sobretudo, de rendimento negativo.
Em concreto:
Estado: ... Existe ainda um sistema de segurança e prevenção, composto por seis centrais que asseguram o fornecimento de energia em caso de falhas no sistema de primeira linha, além de uma rede de distribuição paralela a activar em caso de emergência.
Privado: Mas o sistema de primeira linha falha assim tanto?
Estado: A última falha em que tivemos de accionar os sistemas de apoio ocorreu há vinte anos. Desde então, o sistema alternativo tem estado inactivo, embora seja mantido a 100% da sua operacionalidade.
Consultor do Privado: Se desmantelarmos o sistema de segurança e prevenção e o vendermos a um país africano e a isso somarmos os lucros com a ausência de manutenção e pessoal dessas unidades, poderemos instalar um back-up razoável no próprio sistema de primeira linha por uma fracção ínfima dos ganhos assim obtidos.
Estado: Mas isso pode ser insuficiente!
Privado: Não se preocupe. Daqui por vinte anos esse problema estará ultrapassado e já existirão recursos que tornarão obsoletos os existentes. Entretanto, quem se lembrará desse pormenor? Ou já não está interessado em vender?
Estado: Não, não! Isto é, sim! Quer dizer, os Senhores é que sabem!
nota:
O "apagão" recente, na América do Norte, não veio trazer nenhuma novidade. A situação na África do Sul, com o infame programa GEAR (Growth Employment and Redistribution), está virada de cabeça para baixo
desde 1996 - um "apagão" de respeito, se comparado com o mais mediático do final da última semana...
Ver a entrada seguinte:
Compra-se