Daniel Deusdado assinava o seu
último editorial no Público, a 24Ago2003, intitulado: "
Sérgio, Annan e esta dor" (reprodução integral abaixo).
Esta dor é partilhada por milhões de pessoas em todo o mundo, entre as quais me encontro, assim como partilham, também, a sua esperança na recuperação da ONU, catalisada por eventos que, pela tragédia que encerram, mais parecem destinados a terminar de uma vez com as Nações Unidas. Essa esperança é, para mim, ténue, abafada que está no meu subconsciente pela aparentemente inexorável caminhada da História em sentido oposto.
Contrariamente a Deusdado, não consigo encontrar entre as qualidades inequívocas de Kofi Annan as que seriam necessárias para recolocar a ONU e os seus membros nos lugares devidos - os de quem não apenas deve, mas tem de respeitar o Direito internacional. Oxalá me engane.
Como Daniel Deusdado, porém, tenho plena certeza que os que fazem do terror a sua arma jamais conseguirão eliminar todos os que amam a paz. Tenho para mim, ainda, outra certeza: a de que saberemos permanecer livres ante a investida brutal dos que pretendem usar o medo que emana desse terror para nos intimidar e convencer a prescindir dos nossos direitos em troca de nada.
Acredito que uns e outros, ambos agentes activos do terror, nunca nos conseguirão eliminar a todos, os que amamos a paz, sim, mas os que não hesitam em lutar pela sua liberdade, seja quem for o inimigo.
Daniel Deusdado deseja que os leitores do Público o continuem a preferir como jornal diário e parte para realizar projectos pessoais. Daqui lhe desejamos boa sorte. Assim perde o Público um dos seus elos mais fortes...
... Adeus.
E até sempre.
Pel'A Sombra,
RS
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Último editorial no Público de Daniel Deusdado
(texto integral):
Sérgio, Annan e Esta Dor
Por DANIEL DEUSDADO
Domingo, 24 de Agosto de 2003
1. Há uma dor que nos toca fundo quando olhamos para a urna que transporta Sérgio Vieira de Mello e o "vemos" pela última vez, e com ele perdemos um novo pedaço de uma certa ideia de que a Paz vence.
Aos ombros daqueles soldados brasileiros pesa não apenas um corpo mas a nossa derrota planetária, como se ali estivesse figurada a impossibilidade de acreditar nos outros ou a incapacidade da ONU em evitar que poderes extremistas tomem conta do mundo.
Mas depois de se olhar - mesmo não se querendo olhar - para Sérgio Vieira de Mello, resta-nos limpar a face e pensar que mesmo assim é possível vencer a desordem alienada no Iraque, a agonia do Médio Oriente, a fome de África, o aquecimento global ou o cansaço de entregar a vida dos nossos melhores às mãos dos cada vez mais numerosos líderes de orgias de sangue e terror. Mesmo que não tenhamos grande certeza disso. Mas estas são causas que não dependem de optimismos ou de pessimismos, mas de convicções, como ontem demonstrou Ramiro Lopes da Silva, o português indigitado para o lugar de Sérgio. A nossa vida é tanto melhor quanto mais livre for para seguir um ideal.
2. A morte de Sérgio Vieira de Mello e as notícias que vão acompanhando a escalada de violência obrigam-nos a mudar. Para conseguirmos evitar uma dilaceração permanente da alma - em que cada notícia é como uma pedra na confiança num mundo melhor -, temos de nos ir transformando em pessoas-com-carapaça-de-tartaruga. No mais profundo do nosso interior é difícil resistir à espiral de loucura global sem se construir uma sólida barreira contra todas as notícias que quotidianamente empurram os limites do nosso espanto para mais longe.
O nosso novo marco civilizacional, o 11 de Setembro, pulverizou a nossa capacidade de "confiar" nos outros homens - confiar no sentido de "humanidade" que nos transcende a todos, unidos pelo respeito a esse ténue véu, inultrapassável, que é a vida.
Depois do 11 de Setembro, a noção de que o "alvo" somos todos nós, desde que possamos ser contados como vítimas, foi-nos tornando protagonistas de cada notícia. Se vai pelo ar um autocarro em Jerusalém, ou um grupo de pessoas junto a uma qualquer embaixada, ou se falha a luz numa cidade como Nova Iorque e a multidão é tomada pelo terror do atentado, somos nós. Mas é deste terror que vivem os terroristas, e é contra estas causas que temos de nos manter firmes na convicção de que somos muitos mais os que amamos a Paz. Não nos conseguirão eliminar a todos.
3. Talvez como nunca, Kofi Annan apareceu nos últimos dias de semblante dilacerado. Devemos reconhecer que, dia após dia, com grande sentido de equilíbrio e procura de consensos, Annan tem sido o garante de milhões de vidas. Também ele faz parte do grupo dos melhores que o mundo tem e é, talvez, a nossa maior esperança.
PS - Para dar continuidade a projectos pessoais, este é o último editorial que assino neste jornal. Aos leitores, o meu profundo obrigado por continuarem a preferir o PÚBLICO, um espaço ímpar de informação em Portugal.
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(extraído de
http://jornal.publico.pt/2003/08/24/EspacoPublico/OEDIT.html)
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