terça-feira, agosto 26, 2003

Um Kuffiyeh longe de mais...


Não existe nada que mais me agrade que uma boa discussão, no sentido lato de troca de ideias, pois para além de "apenas saber que nada sei" me sinto estimulado a procurar novos argumentos e, como bem sabem os que lêem A Sombra, não tenho grilhetas dogmáticas que me impeçam de reconhecer como válidas as ideias que o são, venham elas de que quadrante político vierem.

Por vezes, porém, não consigo discutir determinados assuntos com determinados interlocutores; por exemplo, não consigo discutir cinema com quem nunca viu um filme. Nessas alturas, o melhor é mudar de conversa e/ou de interlocutor.

Hoje tive essa experiência com o jcd, do Jaquinzinhos.
(Aqui, como aqui - ver abaixo)
Compreendo, perfeitamente, a sua raiva e a sua convicção, mas nunca conseguirei aceitar a sua visão limitada do conflito israelo-árabe.

Com quinze anos, simulava as manobras das IDF (Forças de Defesa Israelitas) na guerra do Yom Kippur com os meus modelos; com dezassete, usava um camuflado com a insígnia da Sayeret Tzanhanim (Entebe) - "Yoni" Netanyahu era um dos meus "heróis" (ainda hoje o considero um herói) - e amigos meus viraram-me as costas por o fazer; com essa idade, os meus pais impediram-me de ir para Israel como voluntário (para um Kibbutz); aos dezoito, maravilhava-me com a audácia da IAF (Força Aérea Israelita) no seu ataque a Osiraq (embora me fosse já visível algo mais, para além da brilhante manobra militar). Não conseguia, por mais que mo explicassem, ver o "outro lado". Pensava que um bom árabe era um árabe morto. Ponto final.
Aos dezanove concorria para a Academia da Força Aérea Portuguesa, onde não entrei por ser considerado "demasiado agressivo" (foi o que me disseram!), após alguns dias de testes médicos e psicotécnicos - de entre os rótulos que me tentam colocar, talvez o que mais repudio seja o de "pacifista" no sentido de "objector".

E aconteceu o 16 de Setembro de 1982...
Penosamente, como sionista convicto da "superioridade moral" do Eretz Israel e como lusitano aristocrático, descendente de Cruzados e da nobreza católica espanhola, herdeiro da melhor tradição da "reconquista" ibérica aos mouros, fui percebendo muitas coisas que não compreendia, não sabia ou não queria ver.
Para mim, Sabra e Chatilla foram o ponto de viragem, não para o sentido contrário, mas para a percepção de que o terror era usado há muito por mais do que um dos lados do conflito.

A partir de então, tenho testemunhado o que ambos os lados fazem, recorrendo a variadas fontes, desde o Haaretz à Al-Jazeera, do Le Monde Diplomatique à The Economist, da CNN à M5, passando pela BBC. Não vejo que nenhum deles possa reclamar "superioridades morais" ou outras. Vejo intransigência, vejo ódio, vejo racismo... Vejo dois povos que viviam em harmonia há séculos serem empurrados um contra o outro pelos sonhos de glória "ocidentais" e "civilizados" que lhes vendemos.

Nas minhas estantes, poder-se-á encontrar "The Revolt" (Menachem Begin) ao lado do "Dossier do Conflito Israelo-Árabe" (com prefácio de Jean-Paul Sartre), "A Riqueza e Pobreza das Nações" (David S. Landes) encostado à "História da Revolução Chinesa" (Enrica Collotti Pischel), "Our word is our weapon" (Marcos) é vizinho da "Diplomacia" (Henry Kissinger), "A New Generation Draws the Line" (Noam Chomsky) convive com "Bush at War" (Bob Woodward)...

Hoje uso um Kuffiyeh ao pescoço todos os dias, mas não com o significado que um dia usei o falcão da Sayeret Tzanhanim num casaco camuflado. Nesses dias, o falcão era uma lâmina apontada aos árabes, hoje, o kuffiyeh é uma mão estendida à humanidade inteira. Para jcd, porém, ele é, ainda, uma lâmina apontada aos judeus. Lamento.

Compreenderá jcd (de quem não faço a mínima ideia de como se chama ou que idade tem) que não consiga ver o mundo a preto e branco, como ele. O mundo, para mim, será sempre obscuro, como já tive oportunidade de lhe referir. E não lhe tenho nada a levar a mal.
Se existe um responsável por não me fazer entender junto a jcd sou eu, que sei há muito que não adianta falar de matizes com quem é incapaz de ultrapassar a barreira do preto ou do branco.

Assim considero encerrada esta "metapolémica" com jcd, mas não a abordagem do dilema israelo-palestiniano na blogosfera.

Ao Jaquinzinho, um abraço.

Pel'A Sombra,
RS

nota:
Talvez uma forma de ver o mundo através dos meus olhos seja seguir as entradas relativas ao ensaio "Camelot 2003" que vou publicando, sequencial mas espaçadamente, n'A Sombra - link ao lado em algumas Sombras. Fica prometida para hoje, mais logo, a publicação de mais um capítulo.

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