(aviso à navegação: ironia zero)
"
Número de militares americanos mortos no Iraque pós-guerra ultrapassou as baixas da invasão" (in
Público de 27Ago2003, p. 2)
Um título intrigante.
Primeiro, um retrocesso, pois o Público já começara a descrever as baixas no Iraque como
"desde o arranque da guerra, em Março, (...)" (in
Público, 23Ago2003), parecendo ter assumido a evidência: não existe pós-guerra (até a RTP já começa a falar dele como "suposto").
Depois, chama "invasão" ao que, até há bem pouco tempo, era "intervenção". Ainda que a descrição esteja correcta, não deixa de demonstrar falta de isenção editorial. Que se fale de "invasão" em artigos de opinião é uma coisa, que tal seja uma opção editorial é outra, num jornal que, supostamente, não toma partido por nenhum dos lados do conflito, nem alinha com nenhuma corrente de análise do mesmo.
Decidam-se.
O número de baixas entre os norte-americanos está a aumentar a um ritmo elevado. Ontem mesmo foram mortos mais dois. Preocupante é não haver noção exacta do número de feridos, especialmente os graves, pois é comum estes serem em maior número que as vítimas mortais. Nos contingentes de outros países, Reino Unido, mas também Espanha e Dinamarca, pelo menos, existem mortes a registar.
Em todos os exércitos existem bestas; supostos seres-humanos que aproveitam a ocasião proporcionada por uma guerra para darem largas à sua bestialidade, para serem os animais que, em situação de paz, a sociedade não permite que sejam. São um punhado sem expressão numérica significativa, mas capazes de danos substanciais, a todos os níveis, incluindo, especialmente, o efeito de contágio endogénico em situações limite, se não controlados.
Os exércitos não são feitos destas bestas.
Os exércitos, mesmo nas suas componentes de élite mais fanatizadas, são compostos por jovens comuns a todos os jovens, apenas divergindo nas suas culturas; jovens em idade de serviço militar que têm famílias, como as nossas. A única coisa que os distingue dos que não servem no aparelho militar será, talvez, o facto de estarem armados. No caso do exército dos EUA a diferença aumenta na proporção da qualidade e capacidade do poder de fogo que carregam, aumentando ainda mais, como acontece na maioria dos países árabes (principalmente nos fundamentalistas islâmicos), por serem provenientes de uma sociedade onde ter e usar uma arma é tão natural como respirar.
Jovens assim, para não exacerbarem o seu papel de militares, necessitam não apenas de instrutores e treino qualificados e de qualidade, mas, sobretudo, dependem da capacidade de comando, controlo e discernimento da parte dos seus superiores directos no terreno, sargentos e oficiais, sendo estes últimos, por norma, aproximadamente da sua idade.
Em situações limite, envolvendo milhares de homens, cometem-se muitos erros, morrem inocentes, acontecem acidentes... No Iraque, parte da responsabilidade é do comando supremo, que quase afirmou que o pós-guerra seria o Paraíso para, afinal, se verificar que nem o fim da guerra chegou, nem se trata de nenhum paraíso; bem pelo contrário. Longe da propaganda doméstica, para consumo dos civis e dos militares que lhes seguirão os passos, estes rapazes (e raparigas), confrontados com uma realidade inesperada, perdem moral, perdem capacidade de agir com discernimento e convicção. Claro que lhes disseram que a "guerra" seria dura, que teriam de suportar um número indeterminado de baixas, que se deviam preparar para o pior. Mas também lhes disseram outras coisas... Começou a ouvir-se "reconstrução", "governo provisional", "libertação", "final das grandes operações"... Se tal coisa chegou a passar como certa fora do Iraque (para os que só vêem determinados canais informativos), para eles, no terreno, carregando os cadáveres dos seus camaradas de armas dia após dia, o efeito não terá sido muito menos que o de terem sido iludidos.
Afinal, a guerra não terminou.
E quando os últimos a sair são os primeiros, como aconteceu com a Cruz Vermelha, nada de bom auguram os oráculos...
Para acabar com as suas dúvidas (e com as nossas) decide o Supremo Comando trocar um administrador militar, que não estava a ir a lado algum, por um civil que, mal chega ao Iraque, decide dissolver o exército vencido, que poderia ser aproveitado para algo mais útil ou, no mínimo, efectivamente controlado nos seus quartéis.
Em vez disso, esses iraquianos desesperados por não terem como sustentar-se ou às suas famílias, engrossam o que quer que seja que ataca e martiriza os ocupantes, diariamente. E o que sempre foi perceptível torna-se dolorosamente evidente: os EUA (quanto mais os seus aliados envolvidos directamente na acção) nunca tiveram homens suficientes no Iraque para o controlar de forma eficaz, para o ocupar. Qualquer analista não comprometido, ou mesmo um leigo minimamente informado, sabe que os efectivos presentes no Golfo Pérsico mal dariam para ganhar a guerra, caso a resistência fosse feroz, mesmo com total superioridade aérea, isto é, ganhar-se-ia, mas a um preço bem mais alto.
Lembro-me de ter contactado uma amiga norte-americana, ex-oficial da Marinha de Guerra dos EU, quando começou a invasão apenas pelo Sul e as tropas do grupo Norte estavam paradas na Turquia, altura em que o Sétimo de Cavalaria (apenas o 3º esquadrão do Sétimo Glorioso, ponta de lança da 3ª Infantaria Mecanizada, e não uma Divisão - como alguns "especialistas" lhe chegaram a chamar nas nossas televisões - nem sequer o Regimento inteiro!) esticou a linha de abastecimento ao limite máximo e se chegou a temer o pior.
"Que demónio estão eles a fazer?" perguntei-lhe. A resposta foi "Esperemos que o saibam ou Deus os ajude." Mesmo com a relativa facilidade com que se entrou em Bagdad (a cidade ainda hoje está por controlar), algo nos dizia que havia mais qualquer coisa... Que nada acabara, talvez tivesse apenas começado, quando a estátua de Saddam Hussein foi derrubada, frente ao Hotel Palestina.
Infelizmente, assim é.
Por mais que Rumsfeld não queira admitir, são evidentes as dificuldades no terreno e os recentes ataques pontuais, a milhas de locais minimamente guarnecidos pelos norte-americanos, são pouco significativos, pois o controlo permanente dessas zonas não existe. O deserto pode ser muito pior que a selva, em termos de detecção de forças inimigas, sobretudo tão pequenas, mesmo com o poder de vigilância electrónica dos EUA. Varrer um território como o Iraque de forma sistemática e completa é impossível à detecção por satélite ou por meios aéreos, sobretudo quando se está envolvido em praticamente todos os teatros de operações do mundo, activos ou potenciais.
Sinceramente, espero que todas estas mortes, todas elas, de que raça ou credo tenham sido em vida, venham a justificar-se; que tenham como resultado não só um Iraque justo e livre, mas um mundo melhor.
Infelizmente, para grande tristeza minha, não me parece que tal venha a suceder tão cedo; e mesmo que venha a acontecer no futuro longínquo, com os dados de que dispomos, sabemos hoje que todas estas mortes poderiam ter sido evitadas. Não se evitariam outras? Não o sabemos. Possivelmente. Por forma que não se verificasse o que hoje se verifica, estava a ONU a trabalhar. É o que sabemos. O Governo norte-americano aborreceu-se de esperar mais algum tempo porque os iraquianos teriam prontas a usar "em 45 minutos" ADM's terríveis que ameaçavam o "mundo livre". É o que sabemos.
No Iraque, todos os dias, morrem com honra homens em uniforme, pois é o seu dever. Um dever cumprido nas condições que todos conhecemos e, por isso, com mais valor, pois não lhes compete a eles voltar as armas contra o seu Governo. Não em democracia que, imperfeita como todas, é a que ainda existe nos EUA.
Para os civis fica outro dever.
O de reconhecerem de uma vez por todas que uma guerra só se faz em último recurso e em legítima defesa. No Iraque, claramente, ainda que existissem milhões de ADM's na posse de Saddam Hussein, estas regras não foram respeitadas. Que moralidade temos para exigir aos iraquianos, resistentes, terroristas ou meros familiares enlutados sedentos de vingança, que respeitem regras?
E eis que chega o Demo para a cobrança.
Pagaremos em sangue, mas não com o nosso, como de costume, antes com o dos que por nós enviam aqueles que o podem fazer, sejam os enviados soldados ou médicos, diplomatas ou polícias, e com o sangue dos que eles irão matar ou não conseguirão salvar. Em democracia, o sangue dá para todos, não é só para os políticos.
Em democracia, o sangue dos que hoje morrem no Iraque, de
Sérgio Vieira de Mello ao mais incógnito soldado norte-americano, da criança iraquiana mais desconhecida ao
mais alto e mediático religioso iraquiano, está nas mãos de todos nós.