quinta-feira, julho 24, 2003

Camelot 2003 . 2

(continuação da publicação deste ensaio)
Ver entrada inicial "Camelot 2003", nos Arquivos d'A Sombra, de 16Jul2003)


2. O eixo Atlântico

Como alguém referiu de forma cristalina e lúcida, ser estruturalmente pró americano e conjunturalmente contra o seu governo é a posição da esmagadora maioria dos europeus e aquela em que me encontro. Claro que existirão muitos entre os que protestam contra o governo norte-americano que são, totalmente, contra os EUA e que sonham com a vitória de Saddam Hussein, mesmo que não o digam abertamente. Serão os mesmos que rejubilam perante os discursos inflamados e desafiadores de Fidel Castro e não fazem distinções entre o povo e o seu ditador, quando se manifestam contra o abjecto embargo decretado a Cuba; os que identificam todos os "gringos" com o "grande satã". Não é o meu caso. Ao protestar contra o criminoso embargo ao Iraque, faço-o pelo povo iraquiano e não por Saddam Hussein, que graças a ele enriqueceu muito mais e ganhou muito mais força, tal como Castro. Sempre admirei os Estados Unidos e os seus melhores feitos e conquistas, mas sempre procurei reconhecer os seus excessos e me preocupei com o futuro de uma nação que, de um momento para o outro, se viu só no topo do mundo. Não são os EUA, mas a política da sua actual Administração o que me revolta. E é o que revolta milhões de norte-americanos.

Correspondo-me, regularmente, com uma cidadã norte-americana, residente em Atlanta, na Georgia, e aquilo que sei do dia-a-dia actual dos norte-americanos ultrapassa um pouco o que nos chega via comunicação social. Dessa fonte e de inúmeras horas de pesquisas em sites de opinião e de organizações de direitos humanos norte-americanas, a ideia é clara: os norte-americanos temem pela sua democracia - e temem com toda a razão. Não é apenas o europeu, chamado "de Vénus", o intelectual civilizacionista do Velho Continente, que pensa que a extrema-direita se instalou no poder, em Washington. Esse sentimento é partilhado pelo simples cidadão norte-americano, que nunca passou os olhos pelos escritos de Tocqueville ou Maquiavél, mas a quem, contrariamente a muitos europeus, documentos dolorosamente actuais, como o "USA PATRIOT Act" não passaram ao lado.

Ver pessoas com formação superior e, supostamente, inteligentes e democratas sancionar os actos da actual administração norte-americana é tão mais fantástico quanto o seu argumento base de que os EUA são a maior (entenda-se "mais bem conseguida") democracia à face da Terra.
Nada podia ser mais falso, mesmo antes do 11 de Setembro.

O sistema democrático dos Estados Unidos da América, convém não esquecer, está baseado em dois documentos fundamentais, que datam do século XVIII: a Carta dos Direitos ("Bill of Rights") e a Constituição. O seu uso dos princípios estabelecidos nesses documentos tem sido similar ao que o Vaticano faz da Bíblia. Em tempos de tranquilidade, relembram-se da necessidade de os analisar usando bom senso e perspectiva histórica, mas em tempos conturbados, quando o povo carece de uma orientação firme, esses escritos passam a valer como se redigidos na actualidade e são interpretados literalmente, perdendo-se toda a noção de perspectiva histórica e senso comum.

Muita gente, dentro como fora dos EUA, acredita que a Guerra Civil norte-americana foi travada para acabar com a escravatura. Não existe noção mais absurda! O fim da escravatura foi uma consequência da vitória do Norte sobre o Sul, mas nunca passou pela cabeça de nenhum responsável governamental norte-americano da altura igualar os negros aos brancos. Para os que hoje conhecemos como "anti-esclavagistas" era impensável que os negros tivessem direito de voto ou que se pudessem casar com brancos - a miscegenação não era um factor ponderável, sequer. Diziam-no claramente, como fez Lincoln, ainda hoje tido como um campeão do anti-esclavagismo, mesmo por largos sectores de afro-americanos. A luta pelos direitos dos negros nos EUA dura até à actualidade e está longe de ter terminado, assim como a de outras minorias étnicas ou, melhor dizendo, de todos os que nascem sem linhagem branca anglo-saxónica e, preferencialmente, protestante.

Os que pensam ver nas presenças de Colin Powell e Condollezza Rice na actual administração um sinal de que não é tanto assim estão tão iludidos como os que usavam a imagem dos chamados "house niggers" (pretos domésticos) para minorizar o problema da escravatura. E se Colin Powell ainda consegue, apesar de tudo, dar uma imagem de certa verticalidade e resistência, o papel de Condollezza Rice chega a ser patético - tão patético que a chegamos a imaginar como uma imagem espelho de Michael Jackson - sem plásticas.

Mais do que em qualquer outro período da História, incluindo os anos sombrios do McCartismo, a democracia e a liberdade de expressão estão em perigo nos EUA. A facilidade com que são ultrapassadas todas as barreiras legais (mais destruídas que ultrapassadas) é estonteante. A concentração de poderes em determinados nichos é assombrosa e a negação dos mais básicos direitos individuais já é um escândalo. Basta referir que, neste momento, sem culpa formada e com base na mais leve suspeita, qualquer cidadão norte-americano pode chegar a casa e verificar que todos os seus livros, notas pessoais, computadores, discos, roupas - até mobiliário e electrodomésticos - foram "confiscados" pelo Estado na sua ausência. Basta que o FBI, por exemplo, considere pertinente um exame desses itens "suspeitos" em sede "mais adequada". Na eventualidade de tal cidadão se dirigir a uma esquadra de polícia para protestar pelo sucedido, talvez convencido que um qualquer "gang" lhe havia levado todos os haveres excepto a própria casa, basta uma autorização do procurador-geral dos EUA para que o desgraçado seja atirado para uma cela em lugar incerto e deixado a secar pelo tempo que for julgado "necessário". Isto sem advogados, sem telefonemas, sem comunicar com a família, sem lhe ser, sequer, explicado o porquê da detenção. E, note-se, não estamos a falar de cidadãos de uma qualquer etnia minoritária, de árabes ou de negros. Isto pode acontecer ao mais puro "WASP" à face dos EUA. À luz desta realidade, chamar aos Estados Unidos a "maior democracia do mundo" é um insulto a ambos; à democracia e ao mundo. É esta conjuntura que é preciso ter em conta na hora de se ajuizar sobre os "nossos amigos americanos".

Não existem dúvidas de que os norte-americanos são amigos dos europeus, pelo menos na sua esmagadora maioria, mas que não restem, também, dúvidas de que, na sua esmagadora maioria, a actual administração norte-americana está bem longe de ser amiga da Europa, a não ser que o conceito de "amigo" passe a englobar características como a prepotência e o desprezo. Uma coisa é certa, nunca a América esteve tão distante da Europa como hoje - e esta atribuição não é aleatória, pois foram os EUA que se afastaram da Europa e não o contrário.

Com o afastamento duvidoso dos Democratas da governação dos Estados Unidos, assistimos, primeiro, antes do 11 de Setembro, a um isolamento caracterizado pelo menosprezo pelas questões externas e pela exacerbação da política interna; depois, após o 11 de Setembro, verifica-se uma total inversão da política norte-americana, do interior para o exterior, mas sem perder o seu cunho isolacionista de início de mandato. Sempre com Tony Blair de corpo presente, amplificando a noção que vigora na actualidade de que o Reino Unido é um mero apêndice dos EUA, foi começando a ser divulgada ao Mundo uma série de medidas sem qualquer precedente na História - declaração de Estado de Guerra Orwelliano, abrindo caminho para a eliminação dos direitos e liberdades dos cidadãos norte-americanos e dos estrangeiros em solo norte-americano (que inclui as representações diplomáticas, os navios e as aeronaves, naturalmente); aprovação de decretos de lei anticonstitucionais ao abrigo da situação de excepção criada; concentração de poderes e ampliação dos mesmos em cargos oficiais que não são controlados ou monitorizados de forma alguma pelo Estado ou por entidades independentes; negação e desrespeito puro e simples do Direito Internacional e dos seus tratados e convenções, como as de Genebra, por exemplo; etc. etc. etc.

Felizmente, para os norte-americanos, e infelizmente, para o resto do Mundo, os EUA nunca experimentaram, desde a sua fundação, três situações que ajudaram a "formar o carácter" das potências europeias, de ontem e de hoje; a saber: os efeitos de uma guerra no seu território, os efeitos de um governo totalitário, a humilhação de uma ocupação estrangeira.

(in Camelot 2003 © Rui Semblano - Porto - Janeiro e Fevereiro de 2003)

Para a frente: ver entrada Camelot 2003 . 2 . Anexo a
(Os efeitos de uma guerra em território dos EUA) de 06Ago2003
Para trás: ver entrada Camelot 2003 . 1
(Das oportunidades perdidas) de 16Jul2003

Sem comentários:

Enviar um comentário